segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O Brasil irá contrair o mal holandês?

José A. Scaramucci, Diretor-Presidente da AB3E
Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (NIPE)
Unicamp

Gostaria de voltar ao interessante tema trazido a esse espaço de discussão pelos colegas Edmilson dos Santos e Paul Poulallion: o paradoxo da abundância.

É conhecido que muitos países ricos em recursos naturais podem ser acometidos de uma nefasta doença. Congo, Nigéria, Venezuela e Bolívia, entre outros, são países freqüentemente citados como vítimas da chamada “maldição dos recursos naturais”, com sintomas que variam desde desempenho econômico decepcionante até falhas sérias das instituições. Os níveis de corrupção tendem a ser elevados. Como ilustrado por Jann Lay e Toman Omar Mahmoud, do Instituto Kiel de Economia Mundial, em “Bananas, Oil, and Development: Examining the Resource Curse and Its Transmission Channels by Resource Type” (Kiel Working Paper No. 1218, 2004):

Being confronted with criticism regarding corruption and plunder under the Marcos regime, Imelda Marcos, widow of the former Indonesian dictator, claimed that descriptions of her prodigious shoe collection were grossly exaggerated. ‘I did not have 3,000 pairs of shoes, I had 1,060’.

Mas outros países que têm nas exportações de recursos parte importante de suas economias conseguem se sair melhor. Exemplos são os Emirados Árabes Unidos – que devota boa parte das receitas de exportações em investimentos em infra-estrutura moderna e educação – e Botswana, que consegue traduzir as riquezas de seus diamantes em serviços de educação e crescimento econômico. Ambos esses países teriam conseguido transformar a maldição em bênção. A conferir.

E o Brasil, país tropical “abençoado por Deus e pela natureza”, estaríamos nós imunes?

O Brasil se prepara para se tornar importante ator global em energia. Os esforços para superar os choques do petróleo da década de 1970 levaram os setores agrícola e industrial da cana-de-açúcar do Brasil a experimentar um grande desenvolvimento tecnológico com enormes ganhos de produtividade. Um êxito inegável do Proálcool foi exatamente o de promover sinergias, aliando competências técnicas de importantes indústrias – automobilística, combustíveis e bens de capital – e instituições de pesquisa, sempre com o apoio continuado de organismos governamentais em diversas áreas – tecnologia, política industrial, planejamento energético, agricultura, entre outras –, para realizar uma das poucas iniciativas de inovação de alcance global já ocorridas no Brasil. Com investimentos pesados em tecnologia e sem economizar em prospecção, a Petrobras se mantém no mundo todo como símbolo de boa gestão, uma exceção entre as chamadas empresas nacionais de petróleo. E agora não se fala outra coisa senão sobre as recentes descobertas do subsal, que aqui no Brasil recebeu o equivocado título de “pré-sal” – equivocado, ao meu ver, pois coloca a questão das descobertas sob o ponto de vista do próprio petróleo ao invés de manter a perspectiva da sociedade brasileira, essa sim situada sobre as águas, no pré-sal. Mas isso é outra história.

Gostaria de fazer um recorte – afinal, blogs nada mais são que uma coleção de recortes – sobre o caso dos biocombustíveis. Em recente trabalho com colegas do Centro de Estudos de Políticas (CoPS) da Universidade de Monash, Austrália, usamos um modelo computável de equilíbrio geral para quantificar e decompor os impactos econômicos da ampliação em larga escala da produção de etanol no Brasil. Bem antes da polêmica envolvendo biocombustíveis e segurança alimentar ter ganho tanto interesse nos meios de comunicação, queríamos entender se o crescimento expressivo das vendas de álcool carburante – para usar um termo antigo – poderia comprometer a produção de alimentos a longo prazo no Brasil. Outra questão era: dá na mesma usar o álcool no mercado interno ou os efeitos seriam diferentes se ele é exportado? Usamos como referência para as simulações um cenário proposto pela Unica a respeito do uso doméstico e exportações de etanol em 2020. As conclusões são interessantes, às vezes até surpreendentes.

O debate sobre a indústria de etanol no Brasil tem colocado excessiva ênfase nas possibilidades de exportação. Entretanto, as simulações sugerem que será a demanda doméstica a influência determinante na economia brasileira, ao menos até 2020. A razão para isso é simples. As exportações de etanol correspondem a uma fração muito pequena do produto brasileiro. Além disso, o comércio exterior representa pouco – apenas cerca de 8% do PIB do Brasil. Por outro lado, fazer previsões sobre o mercado de etanol implica avaliar também o que será feito da gasolina que eventualmente irá sobrar. Isso nem sempre é feito, embora possa parecer óbvio. Obviamente, a gasolina excedente irá ser exportada e isso terá impactos econômicos. As simulações indicam que essa espécie de efeito indireto do mal holandês será muito mais importante que as mudanças estruturais trazidas pelas exportações de etanol.

Tornou-se comum recentemente atribuir aos biocombustíveis o papel de vilão pelo desmatamento. Mas a conversão da terra usada em outras atividades agropecuárias seria bem pequena – menos que 2% –para acomodar a expansão da produção de etanol prevista pela Unica (65,3 bilhões de litros de álcool combustível seriam produzidos em 2020).

Os impactos causados por mudanças no uso da terra são mais diretos e, portanto, mais fáceis de entender. Mais áreas agriculturáveis passam a ser ocupadas com cana-de-açúcar, causando um aumento nos preços da terra e, por conseqüência, nos custos de produção dos setores que produzem alimentos. Portanto, ocorre uma diminuição na oferta de alimentos.

Mas a apreciação da moeda brasileira afetará a produção de alimentos tanto quanto as mudanças no uso da terra. A cadeia de causalidade funciona assim. Quando o Brasil passa a exportar um grande volume de gasolina sob condições de demanda perfeitamente elástica (pode-se supor que o Brasil pré-pré-sal não seria capaz de influenciar os preços internacionais dos combustíveis fósseis), então é possível reduzir as exportações de outras coisas que têm maior poder de mercado. Isso significa um aumento nos termos de troca e a conseqüente apreciação da taxa real de câmbio. Setores econômicos expostos ao comércio internacional – que produzem os chamados bens transacionáveis (tradables), alimentos, inclusive – tendem a se retrair. Esse é o efeito do mal holandês.

O uso de um modelo computável de equilíbrio geral para analisar mudanças estruturais é conveniente, pois permite, entre outras coisas, decompor os impactos das diversas forças atuando ao mesmo tempo em todo o sistema econômico. Nesse caso, as simulações mostram que as mudanças do uso da terra e do mal holandês têm aproximadamente o mesmo efeito na oferta de alimentos.

Os detalhes do estudo podem ser encontrados em http://www.monash.edu.au/policy/ftp/workpapr/g-169.pdf.

Volto futuramente para discutir os impactos regionais. Cabe já adiantar que alguns estados – como o Rio de Janeiro – irão perder com a substituição em ampla escala de gasolina por etanol no mercado doméstico.


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