sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A questão do pré-sal: a importância da democracia implícita no debate

Francisco Ebeling
Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP)

O atual debate sobre como lidar com as descobertas petrolíferas do pré-sal pode ser considerado tudo menos monótono. A questão central que os debatedores de diferentes correntes políticas, sociais e empresariais colocam na mesa é se o atual modelo exploratório deve ser alterado ou não em prol de um maior beneficiamento do Estado brasileiro e, conseqüentemente, da população do país. Na contramão disso, a exploração petrolífera, especialmente do pré-sal, depende de vultosas somas de investimentos que quiçá o Estado e sua representante empresarial petrolífero, a Petrobrás, não consigam viabilizar. Estabelece-se, desta forma, uma aparente contradição que coloca de um lado estado e de outro lado o mercado.

Uma conclusão que se pode tirar deste complexo embate é que, em termos de consolidação das estruturas democráticas, ele é bastante favorável. A explicação disso é encontrada no que se segue adiante.

Thomas Kuhn, um renomado autor da filosofia da ciência, criou o conceito das revoluções científicas. As revoluções científicas seriam as ondas de destruição criadora, assim dizendo num contexto Schumpeteriano, que deslocariam os velhos paradigmas científicos dando lugar a paradigmas mais atualizados e mais capazes de lidar com a resolução dos problemas científicos que se colocam. Após o advento de uma revolução científica o novo paradigma científico se consolida e tem início aquilo que é conhecido como ciência normal, que são procedimentos científicos longe de serem revolucionários ou capazes de deslocar um paradigma, mas que têm a função de fortificar o paradigma que se consolidou.

Num exercício de abstração, é possível entender que paradigmas científicos são uma boa forma de também criar um referencial analítico para entender qualquer tipo de paradigma em qualquer área prática ou de pensamento. Um exemplo disso pode ser a matriz energética mundial. Existiram fases de uso ou, assim dizendo, paradigmas energéticos como o do carvão, o do petróleo ou o de múltiplas fontes energéticas combinadas (o mais atual) que foram se sucedendo justamente por aquilo que entendemos, desde um referencial analítico, como revoluções científicas.

No entanto, à medida que as fases energéticas foram se sucedendo o mundo foi tornando-se também mais complexo. Os grupos de interesse envolvidos na indústria energética (políticos, econômicos, ambientais e sociais) se tornaram mais numerosos e mais diversificados, as relações comerciais e financeiras mundiais mais complexas, entre outros fatores. De sorte que a idéia de adaptar um referencial analítico como o da ciência normal a um paradigma como o energético precisou sofrer também revisões.

Isto porque a ciência normal é considerada, em Kuhn, uma prática relativamente estável e suscetível a poucas trepidações. No entanto, aquilo que seria a ciência normal no paradigma energético, que é a coletânea de práticas, normas e procedimentos que uma indústria como a petrolífera adota e constantemente atualiza cada vez mais está suscetível a grandes trepidações, justamente pela grande diversificação e interação cada vez mais caótica dos grupos de interesse.

Nesta linha, só que no contexto da filosofia da ciência, os autores Silvio Funtowicz e Jerome Ravetz cunharam o termo da ciência pós-normal. Este seria então a realização de práticas científicas corriqueiras dentro de um determinado paradigma científico, só que com a aceitação de que os tempos são incertos e que existem grupos conflitantes em cada vez maior escala. A ciência pós-normal coloca especial ênfase na importância do debate. O debate e a adequada retórica são as ferramentas chave para que cientistas consigam lidar com os desafios impostos pelos tempos incertos em que os mesmos trabalham. A ciência pós-normal, em grandes traços, é um alargamento da noção de ciência normal, só que incluindo a idéia de que é necessário ter ferramentas para lidar adequadamente com o problema das instabilidades da ciência no mundo moderno, principalmente através do poder e da importância do bom debate.

Voltando ao exemplo petrolífero, nota-se que, diante do atual cenário, usar referências analíticas mais atualizadas que contemplem formas de lidar com a complexidade do mundo moderno e de suas intricadas inter-relações pode ser bastante vantajoso, já que a indústria petrolífera é talvez a mais complexa e importante do mundo. Observa-se também que os problemas envolvendo interesses conflitantes nessa indústria podem ser mais bem abordados e resolvidos se é reconhecido que o bom debate entre os agentes envolvidos é uma ferramenta importante. Essa aceitação fortificaria um paradigma como o petrolífero, ao consolidar as suas práticas e torná-las aceitáveis até para grupos que de alguma trazem oposição à indústria do petróleo, como por exemplo os ambientalistas.

No caso brasileiro e do pré-sal, a exploração dessas reservas pressupõe que o paradigma petroleiro precisará ter continuidade, pois se não fosse assim não haveria rendas petrolíferas advindas da camada pré-sal nem um clima adequado para a segurança dos investimentos. Sabe-se que a melhor solução para a atual questão do pré-sal será encontrada através do bom e bem elaborado debate entre todas as partes envolvidas, satisfazendo em algum grau a todos. Assim, a ciência pós-normal estaria presente, de alguma forma, como referencial analítico importante na questão petrolífera brasileira, já que esta aborda insistentemente o tema do debate. E debate, isso pode ser admitido livremente, é parte constituinte de estruturas democráticas saudáveis, assim como o desejamos e prezamos, principalmente no Brasil.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Pré-sal e a política gasífera nacional

Edmar Luiz Fagundes de Almeida, D.Sc.
Grupo de Economia da Energia
Instituto de Economia, UFRJ

As descobertas do Pré-sal despertaram discussões políticas e acadêmicas muito acaloradas sobre possíveis mudanças no arcabouço regulatório e institucional do setor e sobre o que fazer com o grande volume de óleo a ser produzido. Entretanto, ainda não surgiu no debate uma discussão sobre o gás natural do Pré-sal. Como sempre, o gás natural é esquecido, visto por todos como o “primo pobre” do milionário petróleo. Entretanto, se tiver muito óleo no Pré-sal, certamente tem muito gás natural também. Confirmada esta premissa, o gás natural poderá ser matéria de importantes decisões de política energética, e ocupará a um grande espaço na agenda de discussões no setor energético brasileiro.

O mercado de gás natural no Brasil vem passando por um período de forte turbulência em função da falta de uma oferta doméstica adequada e da nossa dependência do fornecimento Boliviano. A rápida expansão da demanda nos últimos anos resultou numa escassez de oferta. A política gasífera nacional vem passando por profundas transformações, em função da necessidade de arbitrar as prioridades para o uso do gás natural. Por um lado, o governo elegeu o setor elétrico como consumo prioritário; por outro lado, permitiu à Petrobras adotar uma política de forte elevação de preços para desestimular o crescimento do consumo nos outros segmentos. Esta política gasífera representou uma forte inflexão na estratégia de desenvolvimento do setor que, desde a inauguração do gasoduto Bolívia-Brasil, praticou preços relativamente baixos, buscando estimular a demanda para “encher” do gasoduto. Esta mudança radical na política de preços tem conseqüências negativas para a competitividade da cadeia de gás natural e dos setores industriais gás intensivos.

A descoberta do pré-sal descortina uma nova realidade no que tange o potencial de oferta de gás natural no Brasil. A possibilidade de abundância de gás pode representar uma grande oportunidade para uma nova política gasífera que busque disponibilizar para o país grande quantidade de energia a preços competitivos. O gás natural tem o potencial para se tornar um fator importante de industrialização e desenvolvimento. Vários segmentos industriais - tais como cerâmica, química, papel e celulose, siderurgia, metalurgia, entre outros - podem ter na oferta de gás natural relativamente barato um fator de competitividade internacional e atração de investimentos. Diante disto, é fundamental incorporar o gás natural no debate sobre o futuro do Pré-sal.

Enquanto por um lado o governo já se mostra preocupado em não exportar petróleo bruto, e prega a necessidade de investimento em refinarias, já se cogita investir na liquefação de gás natural embarcada na bacia de Santos, inclusive visando a exportação. Esta assimetria é um sinal claro da falta de uma visão estratégica mais ampla no setor de energia nacional. Do ponto de vista da industrialização, é muito mais interessante favorecer a oferta do gás natural a baixo preço para a indústria nacional que gastar bilhões em refinarias que, além de gerar poucos empregos, tem uma viabilidade econômica duvidosa.

Uma nova política de gás natural num contexto de grande potencial de oferta deveria se pautar pelas seguintes premissas:

  1. O mercado doméstico e, em particular o setor industrial, deveria ser prioritário para o aproveitamento e valorização das reservas de gás nacionais;
  2. Enquanto o petróleo deve ser considerado uma commodity internacional e precificado levando em conta o mercado mundial, o gás natural deveria ser considerado um insumo estratégico para o país;
  3. É necessário estabelecer uma política de preços que leve em conta custo de produção, transporte e distribuição, incluindo obviamente uma remuneração adequada para os investidores.