segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Por que o Hidrogênio? - 2a. Parte¹

Prof. Dr. Ennio Peres da Silva
Laboratório de Hidrogênio da UNICAMP
Instituto de Física “Gleb Wataghin”
Universidade Estadual de Campinas

Na primeira parte desse artigo foi mencionado que a grande novidade tecnológica associada ao uso energético do hidrogênio, nos últimos anos, foi o enorme desenvolvimento dado às células a combustível, dispositivo que converte a energia química de um combustível, como por exemplo o hidrogênio, em energia elétrica, tendo como produto resultante vapor d´água. Já neste artigo será dada maior ênfase ao uso dessa promissora tecnologia.

O princípio de funcionamento das células a combustível foi descoberto pelo químico suíço/alemão Christian Friedrich Schönbein (1799-1868) em 1838, mas foi o químico e juiz britânico Sir William Robert Grove (1811-1896) que mostrou a aplicação prática desse princípio ao construir uma bateria voltaica a gás em 1839, utilizando hidrogênio e oxigênio. O termo fuel cell (célula a combustível) foi criado em 1889 pelo químico inglês (nascido alemão) Ludwig Mond (1839-1909) e seu assistente Charles Langer, que construíram o primeiro dispositivo prático, utilizando gás de carvão e ar.

Passaram-se 70 anos até que em 1959 o engenheiro britânico Francis Thomas Bacon (1904-1992) construiu a primeira célula a combustível tipo alcalina (eletrólito de hidróxido de potássio – KOH), com as características das células atuais. Utilizando hidrogênio e oxigênio, esta célula tinha uma capacidade de produzir 5 kW de energia elétrica. Apesar dos avanços técnicos e algumas aplicações, como o trator com potência de 20 HP do engenheiro da Allis-Chalmers Manufacturing Company Harry Karl Ihrig, em 1959, nos anos 60 as células a combustível tiveram sua importância apenas nas aplicações aeroespaciais, uma vez que a NASA utilizou estes dispositivos para a geração de eletricidade e água nos projetos Gemini (células tipo PEM - Próton Exchange Membrane -, o tipo mais indicado para aplicação veicular, desenvolvidas pela empresa General Electric) e Appolo (células tipo alcalina fabricadas pela empresa Pratt & Whitney).

Nos anos 70, com o advento da Crise do Petróleo, as células a combustível foram consideradas para aplicações terrestres, juntamente com o hidrogênio, mas também perderam importância quando os preços do petróleo declinaram no início dos anos 80. Nesta década, apesar de poucas aplicações das células a combustível, muitos avanços científicos e tecnológicos tornaram mais prática e barata a fabricação desse equipamento. Porém, um interesse maior pelas células a combustível somente ocorreu em meados dos anos 90, com o aumento das preocupações ambientais, tomando proporções nunca vistas a partir da busca, principalmente pelos Estados Unidos, para alternativas ao Protocolo de Quioto.

De fato, o uso energético do hidrogênio nunca foi tão estudado e proposto como solução de vários problemas do atual quadro energético de muitos países. A importância dada a esta alternativa varia de país a país, predominando o interesse dos países mais desenvolvidos, que possuem condições de realizar os elevados investimentos que vêm sendo feitos, principalmente no desenvolvimento da tecnologia das células a combustível. A magnitude dos recursos investidos por governos e empresas permite concluir que a introdução do uso energético do hidrogênio será uma questão de tempo, a depender da evolução do quadro dos problemas relacionados às mudanças climáticas, do suprimento e dos preços do petróleo e seus derivados e dos avanços tecnológicos nesta área, em especial quanto à redução dos custos.

Uma observação importante é que a tecnologia das células a combustível está sendo proposta para uso automotivo. Deste fato, várias conclusões são possíveis:
  1. A tecnologia de célula a combustível, que tem merecido a maior parte das atenções, é a do tipo PEM, melhor indicada para esta aplicação. Os significativos investimentos em todos os aspectos desta tecnologia (eletrodos, membranas, catalisadores) implicam em um domínio tecnológico por grandes empresas multinacionais restando, nos próximos anos, poucos desenvolvimentos a serem obtidos, principalmente em países periféricos, como o Brasil, que não possuem elevada capacidade de investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D).
  2. As células PEM operam com hidrogênio, combustível que precisa ser extraído de compostos que possuem este elemento químico. Nesse caso, duas tecnologias se destacam: a eletrólise da água e os reformadores de hidrocarbonetos (compostos formados essencialmente por carbono e hidrogênio). Apesar de se constituírem em tecnologias dominadas, essas se encontram mais disseminadas por várias empresas e em diversos países. Por serem tecnologias mais simples que as das células a combustível, neste campo há mais possibilidades de domínio tecnológico por parte de países como o Brasil.
  3. O elevado grau de pureza do hidrogênio exigido pelas células PEM implica na necessidade de sistemas de purificação deste gás, principalmente quanto à presença de monóxido de carbono, que “envenenam” as células. Como conseqüência, os grandes volumes de hidrogênio previstos para serem utilizados em veículos requererão sistemas de tratamento e purificação, não sendo possível atualmente se determinar qual tecnologia será a mais utilizada. Sendo o hidrogênio produzido junto às estações de abastecimento, como tem sido a grande maioria das estações atualmente em operação ou projetadas, então estes sistemas deverão ser de pequeno porte, o que torna a tecnologia disponível nas grandes refinarias de petróleo não completamente adequadas. Assim sendo, os sistemas de tratamento e purificação do hidrogênio de pequeno e médio porte podem se constituir em uma importante oportunidade para os países que possuem baixa capacidade de investimentos em P&D. No caso específico do monóxido de carbono, catalisadores seletivos poderão também se constituir em uma oportunidade, uma vez que nessa aplicação a tecnologia de catalisadores consagrada nos veículos para redução deste composto não é adequada.
  4. As dificuldades de uso automotivo das células tipo SOFC (Solid Oxid Fuel Cell – Célula a Combustível de Óxido Sólido - indicada para aplicações estacionárias) e o menor interesse atual nesse tipo de geração de energia elétrica fazem com que esta tecnologia tenha um desenvolvimento mais lento que a das células tipo PEM. Como o estado da arte das SOFC indica que ainda há a necessidade de muitos avanços e inovações, esta é uma área que os investimentos em P&D ainda podem resultar em domínio para países como o Brasil. Portanto, esse é um campo que deve merecer maiores atenções no país.
As justificativas apresentadas para o uso energético do hidrogênio e da tecnologia das células a combustível dizem respeito às maiores eficiências obtidas com esses sistemas, bem como a possibilidade do seqüestro do carbono produzido na geração do hidrogênio, uma vez que essa geração pode ser feita em unidades fixas, ou seja, estacionárias. Assim sendo, o uso do hidrogênio no lugar de combustíveis fósseis em veículos - neste caso fontes móveis de emissão de compostos de carbono - permitirá a continuidade do uso automotivo das fontes não renováveis de energia, mas sem que ocorram emissões de carbono.
  1. Esse texto faz parte da tese de doutorado de Ana Maria Resende Santos, defendida em fevereiro/2008 no Curso de Pós-graduação em Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica da UNICAMP, e foi revisado por Cristiane Peres Bergamini, jornalista.

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