segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Por que o Hidrogênio? - 1a. Parte¹

Prof. Dr. Ennio Peres da Silva
Laboratório de Hidrogênio da UNICAMP
Instituto de Física “Gleb Wataghin”
Universidade Estadual de Campinas

O hidrogênio foi descoberto pelo físico e químico inglês Henry Cavendish (1731-1810) em 1766, chamado por ele de “ar inflamável”, tendo recebido o nome atual em 1788, derivado do grego (hydro + genes), através do químico francês Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794), o qual mostrou que a combustão (queima) do hidrogênio resulta na produção de água. Já em 1783, o cientista e inventor francês Jacques Alexandre César Charles (1746-1823) iniciava as aplicações não energéticas do hidrogênio, utilizando este gás em balões mais leves que o ar.

As aplicações energéticas do hidrogênio começaram em 1792, quase 30 anos depois de sua descoberta, com a primeira aplicação comercial do gás de iluminação (gás de carvão ou town gas) realizada pelo engenheiro e inventor escocês William Murdoch (1754-1839), ao iluminar sua residência em Redruth, Cornwall, na Inglaterra. Este gás, produzido a partir da gaseificação do carvão (reação com água através da oxidação parcial e/ou reforma a vapor), é constituído por uma mistura de hidrogênio, monóxido de carbono (CO), metano (CH4), gás carbônico (CO2), nitrogênio e uma série de outros compostos, sendo o teor de cada um determinado pelas condições de operação (com ou sem água, pressão, temperatura, tipo de gaseificador, etc.).

O uso de hidrogênio puro em sistemas energéticos remonta os experimentos do engenheiro alemão Rudolf Erren, nos anos 20 do Século XX, convertendo motores de combustão interna de caminhões, ônibus e até submarinos para o uso deste gás, exclusivamente ou em misturas. Os ensaios com hidrogênio líquido em aviões resultaram no uso desse combustível em foguetes a partir dos anos 60 pela National Aeronautics and Space Administration (NASA), dos Estados Unidos da América². Atualmente, este combustível é utilizado nos principais lançadores de satélites e espaçonaves, como nos ônibus espaciais norte-americanos (Space Shuttle), nos lançadores europeus Ariane e nos russos Próton-M.

O uso intensivo do hidrogênio como energético só foi cogitado, ainda assim por poucos especialistas, na segunda metade dos anos 70, durante o período conhecido como da “Crise do Petróleo”, iniciado com o primeiro “Choque do Petróleo”, em 1973. O segundo “Choque”, ocorrido em 1979, ampliou a idéia desta aplicação, mas a redução dos preços do petróleo no início dos anos 80 fez com que esta e outras propostas de energias alternativas fossem esquecidas. Entretanto, foi nesse período que se constituíram algumas das principais organizações e grupos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) nacionais e internacionais, que vêm, desde então, realizando importantes avanços tecnológicos, estudos estratégicos e elaborando programas de utilização deste energético. De fato, a International Association for Hydrogen Energy (IAHE) foi criada em 1974, sendo a responsável, desde esse ano, pela realização bianual da importante World Hydrogen Energy Conference (WHEC). No Brasil, o Laboratório de Hidrogênio (LH2) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) foi criado em 1975 e o Grupo de Eletroquímica do Instituto de Física e Química da Universidade de São Paulo, campus de São Carlos, em 1980.

Assim, a idéia do uso energético intensivo do hidrogênio desenvolvida nos anos 70 se referia a uma substituição dos derivados do petróleo, muito caros, por alternativas economicamente competitivas, e implicava no uso de outras fontes de energia para a produção desse gás, como o carvão (processos de gaseificação com ou sem reforma) e a energia nuclear (processo de eletrólise da água, no qual há a separação de seus constituintes, hidrogênio e oxigênio), fontes estas com grande disponibilidade na maioria dos países desenvolvidos. Percebe-se, dessa forma, a ausência ou a falta de ênfase, de preocupações ambientais relacionadas a esta idéia. Conseqüentemente, a redução dos preços do petróleo no início dos anos 80 tornou economicamente inviável essa alternativa e reduziu em muito o interesse na tecnologia e economia do hidrogênio.

De qualquer forma, ficou claro para a grande maioria das pessoas que a disponibilidade do petróleo não seria ad eternum. Este aspecto da finitude dos recursos naturais já havia sido destacada em 1972 com a divulgação do relatório “Os Limites do Crescimento” (ou Relatório Meadows) pelo Clube de Roma que, apesar de seus muitos equívocos, se constituiu em um alerta sobre a necessidade de se conter o uso indiscriminado dos recursos naturais e buscar alternativas sustentáveis para o suprimento destes recursos. No caso da produção de energia, estas questões conduziram à busca de melhores rendimentos para os sistemas que utilizam fontes fósseis e investimentos em P&D para as fontes renováveis.

A vertente ambiental associada ao uso energético do hidrogênio sempre fez parte dos argumentos a favor do uso deste gás, mas nos anos 70 este aspecto não se revestia de fundamental importância. De fato, um dos marcos da conscientização ambientalista, o Relatório Brutland (“Nosso Futuro Comum”), elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, só foi publicado em 1987, cerca de 10 anos após a “Crise do Petróleo”. A partir disso, uma série de fatos, estudos e conferências, que não cabe aqui serem detalhados, conduziram à Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUCED), na cidade do Rio de Janeiro – RJ, em 1992, também conhecida como a RIO-92. Um dos principais resultados desta conferência foi a Convenção de Mudanças Climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change - UNFCCC), que conduziu ao Protocolo de Quioto, adotado na Convenção das Partes – 3 (Conference of Parties – 3, COP-3), realizada em Quioto, no Japão, em 1997.

O Protocolo de Quioto, ao fixar metas para a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) para os países enquadrados no Anexo I da Convenção de Mudanças Climáticas e introduzir mecanismos de negociação de créditos de carbono, tornou-se um importante facilitador para a adoção de fontes renováveis de energia e também, indiretamente, da tecnologia e economia do hidrogênio, que aparece nesses casos como um vetor energético.

Entretanto, não houve consenso sobre as diretivas deste protocolo, de forma que alguns países não ratificaram este documento. Entre esses destaca-se os Estados Unidos, um dos grandes responsáveis pelas atuais emissões de GEE. A Resolução Byrd-Hagel, do senado americano, datada de 25 de julho de 1997, deixou claro que esta negativa foi motivada pelos interesses econômicos dos EUA, uma vez que a implementação do Protocolo de Quioto would result in serious harm to the economy of the United States (“resultaria em dano sério à economia dos Estados Unidos”)³.

Essa decisão conduziu o governo americano a buscar alternativas às premissas do Protocolo de Quioto para a redução das emissões de GEE, sem que estas alternativas significassem uma mudança importante no perfil de produção e uso dos recursos energéticos adotado pelos EUA. Com isso, o caminho final escolhido recaiu sobre o desenvolvimento de novas tecnologias, principalmente aquelas que evitam a emissão dos GEE à atmosfera. A análise das alternativas americanas para o problema das emissões de GEE é de fundamental importância para se compreender a atual consideração quanto ao uso energético do hidrogênio. Neste ponto, é suficiente destacar que parte importante da estratégia americana passa pela “descarbonização” dos combustíveis fósseis, ou seja, pela extração do hidrogênio dos hidrocarbonetos fósseis e seu uso energético, principalmente em células a combustível, onde esse uso alcança suas maiores eficiências. Assim, tais conversores de energia se constituem na grande novidade tecnológica que deverá possibilitar o uso energético do hidrogênio.

  1. Esse texto faz parte da tese de doutorado de Ana Maria Resende Santos, defendida em fevereiro/2008 no Curso de Pós-graduação em Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica da UNICAMP, e foi revisado por Cristiane Peres Bergamini, jornalista.
  2. Em 1966 foi lançado o primeiro foguete Atlas-Centaur operacional utilizando hidrogênio líquido.
  3. Byrd-Hagel Resolution, 105th CONGRESS, 1st Session, S. RES. 98, IN THE SENATE OF THE UNITED STATES, July 25, 1997, in http://www.nationalcenter.org/KyotoSenate.html, em 08-09-06.

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